Ação cobra tesouro
arrancado de Minas (Jornal Estado de Minas 22/09/2008)
Portal do século 18, entalhado em pedra-sabão e retirado de
igreja histórica de São João del-Rei, é localizado em fazenda de banqueiro em
SP graças a foto publicada em revista de decoração
Arquivo/Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei/Divulgação
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"É impensável o patrimônio mineiro ser destruído e parte dele ser levado
para adornar jardins em São Paulo. Se vencermos na Justiça, será um marco
na recuperação de bens retirados criminosamente do estado" Marcos Paulo
Miranda, coordenador das promotorias de Defesa do Patrimônio Cultural e
Turístico de Minas Gerais |
O pórtico, na entrada do templo histórico, já em processo de
demolição (acima), e na fazenda de Campinas (abaixo,
no processo do MP), para onde foi levado pelo comprador
Reprodução/Página da ação civil Pública nº
062508082432-3, movida pelo Ministério Público de Minas Gerais
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Graças a uma revista de decoração, Minas Gerais está perto de
receber de volta um significativo fragmento de sua história. Nas páginas de
uma antiga edição sobre casas de fazenda, integrantes da Promotoria Estadual
de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais localizaram o
portal entalhado em pedra-sabão do século 18, que pertencia à Igreja do Senhor
Bom Jesus do Matozinhos, de São João del-Rei, na Região Central do estado,
criminosamente demolida em 1970. A prova impressa na revista motivou os
promotores a ingressar com ação civil pública pedindo a reintegração da
relíquia à cidade de origem e proibindo a retirada da portada da fazenda,
localizada em Campinas, até o fim do processo. Se os proprietários venderem a
peça antes do julgamento, estarão sujeitos a multa de R$ 100 mil.
“É uma importante vitória da luta contra o esquecimento e pela memória. Se a
portada voltar para São João, estaremos reparando, 38 anos depois, um grave
crime cometido contra a cidade”, comemora o presidente do Instituto Histórico
e Geográfico de São João del-Rei (IHG) , José Antônio de Ávila Sacramento. A
briga pela portada foi uma das motivações para a criação do IHG, meses antes
da demolição. Na época, mesmo tombada por outro instituto, o do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a igreja foi destruída a mando do
padre Jacinto Lovato, que comercializou toras de madeira, retábulo e ornatos
de pedra do templo, para arrecadar fundos e construir novo prédio.
O maior tesouro da igreja – a fachada principal – foi vendida a um fazendeiro
paulista por 5 mil cruzeiros, valor equivalente, hoje, a cerca de R$ 4,3 mil.
A legenda da foto na revista em que a peça foi identificada enaltece a “face
silenciosamente bela e mística das Minas Gerais” e destaca a “fé removida das
igrejas ornadas por Aleijadinho para os redutos de São Martinho da Esperança”,
em referência ao nome da fazenda do banqueiro e colecionador de artes paulista
Mário Pimenta Camargos, que morreu em 1996. O texto não deixa dúvidas quando
fala do “pórtico em pedra-sabão trazido de uma Igreja de São João del-Rei para
enriquecer uma capelinha dos anos 50, perdida em meio à vegetação”. O
Ministério Público ingressou com a ação depois que o serviço de inteligência
visitou a fazenda e confirmou a localização da portada.
“A igreja foi demolida em uma época em que não havia preocupação em preservar
o patrimônio. Ela não tinha o charme das igrejas do Centro, mais
tradicionais”, explica o promotor e curador do Patrimônio Cultural de São João
del-Rei, Antônio Pedro da Silva Melo, um dos autores da ação civil pública.
Representantes do IHG cobravam do Ministério Público providências em relação à
portada havia pelo menos cinco anos. Silva Melo afirma ter ficado surpreso ao
encontrar, entre os documentos referentes à demolição da igreja, uma carta do
então dirigente do Iphan, Afonso Arinos de Melo Franco, dizendo não haver,
ali, qualquer elemento de cunho artístico que interessasse à preservação. “Por
ser desprovida de obras de arte conhecidas, a tratavam como uma igreja velha,
em vez de histórica”, afirma o promotor.
Autorizado pelo bispo da época a vender os bens da igreja para levantar fundos
necessários à construção de um novo templo, o padre Jacinto Lovato não gostou
dos protestos contra a demolição. Em carta enviada ao IHG, que estava à frente
da briga, disse não aceitar “a intromissão de alheios à religião em assuntos
de competência da mesma” e argumentou que as igrejas eram para “uso dos fiéis
e não para serem contempladas como pura arte de construção”. A carta foi lida
pelo pároco em voz alta, na missa de domingo. “Mesmo criticado, o padre nunca
se sensibilizou. Ele gostava de ver a igreja construída no lugar da antiga.
Achava que era a glória”, conta José Antônio Sacramento, para quem a volta da
portada, “mesmo simples, virá carregada de muito simbolismo”, em caso de
vitória na Justiça.
Moradores e amigos do Bairro Matozinhos já demonstraram a intenção de
construir um memorial com a portada, bem próximo ao lugar onde ela ficava no
passado. Outra hipótese seria levá-la para o Museu de Arte Sacra de São João
del-Rei, instalado no antigo prédio da cadeia da cidade. Atualmente, o lugar
abriga mais de 200 peças dos séculos 17, 18 e 19. “A volta da portada pode
motivar outras pessoas que sabem onde estão peças do patrimônio histórico de
suas cidades a tentar buscá-las. Mesmo difícil, o processo vale a pena e serve
de exemplo às novas gerações”, afirma o presidente do IHG de São João del-Rei,
José Antônio Sacramento. Denúncias do tipo podem ser feitas às promotorias de
defesa do Patrimônio Cultural das cidades.
Atentado contra a memória
Até representantes do Exército tentaram, em vão, evitar
demolição de igreja histórica de São João del-Rei. Templo veio abaixo ao
completar 200 anos e teve relíquias liqüidadas
Arquivo/Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei/Divulgação
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Templo serviu de abrigo para voluntários a caminho da Guerra do Paraguai e
também recepcionava romeiros que chegavam à cidade |
A demolição da Igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos – da
qual foi retirada portada que hoje adorna uma fazenda no interior de São
Paulo, alvo de ação do Ministério Público mineiro – ocorreu na mesma data em
que eram comemorados os 200 anos de construção do templo, erguido em 1770. A
capela recepcionava romeiros e moradores, principalmente durante as festas do
Espírito Santo, mas ficou marcada pela passagem das tropas dos Voluntários da
Pátria, quando estavam a caminho da Guerra do Paraguai, na segunda metade do
século 19. Homens que viajavam em direção ao front pernoitavam na igreja e, no
dia seguinte, assistiam à missa; depois se alimentavam antes de seguir a
marcha.
“Quando se articulou a demolição da igreja, representantes do Exército fizeram
apelos para que ela não fosse ao chão”, conta o presidente do Instituto
Histórico e Geográfico de São João del-Rei, José Antônio de Ávila Sacramento.
Ele se refere a documento enviado pelo general Dióscoro Gonçalves do Vale ao
bispo dom Delfim Guedes, no fim da década de 1960. O pedido foi ignorado. Um
dos fundadores do instituto, Altivo Câmara, registrou em texto a demolição: “O
frontão veio abaixo, amarrado por dois cabos de aço e puxado por dois
tratores. A cruz de ferro, que permanecera inclinada muitos dias, veio abaixo
com o frontão. Uma perfeita lição de barbárie, dada de graça a uma população
de 15 mil almas”, criticou.
Altivo Câmara também registrou, no texto, a tentativa do então padre Sebastião
Raimundo de Paiva de comprar a portada por 4 mil cruzeiros, valor inferior ao
pago pelo fazendeiro paulista. Até hoje pároco da Igreja Nossa Senhora do
Pilar, monsenhor Paiva se lembra bem da igreja demolida, mas não do episódio.
Ele elogia a volta da portada – “para quem gosta, seria bom mais um lugar para
visitar” –, mas afirma que não basta trazer de volta o bem cultural.
“No Brasil, o patrimônio é tombado, mas não cuidado. Há 55 anos estou entre a
caldeira e o diabo, não tenho amparo para manter a paróquia preservada. Até
para tirar goteira tem que pedir licença”, critica Paiva, que diz recorrer “a
algumas pessoas amigas”, para resolver pelo menos parte dos problemas da
igreja que administra, atualmente tombada pelo patrimônio. “Os fiéis de hoje
não são como antigamente. Se uma coisa é bela arquitetonicamente, tem que ser
guardada. O mais difícil é cuidar das coisas. Sem ajuda, não tem jeito”, diz.
QUEM LEVOU
O advogado e banqueiro Mário Pimenta Camargo (1929-1996), comprador da portada
da Igreja de Bom Jesus do Matozinhos, de São João del-Rei, foi um dos maiores
colecionadores de antigüidades e obras de arte do país. Sua coleção particular
– formada por 4 mil itens, entre quadros, móveis, prataria, porcelanas e
livros – já rodou países como França, Itália, Inglaterra, Bélgica, Portugal,
Espanha e Argentina. Camargo dirigiu o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e
exerceu cargos em diversas outras instituições artísticas, entre elas a
Fundação Bienal de São Paulo e o Museu de Arte Moderna de Nova York. Na ação
de autoria do Ministério Público, além de Pimenta Camargo, figura como réu a
empresa Agropecuária Boa Esperança Ltda., de propriedade da família. Os
promotores que ingressaram com o processo informaram que os herdeiros de
Camargo responderão pela ação. Por duas vezes, a reportagem entrou em contato
com representantes da empresa e da família, mas não houve retorno.
"O frontão veio abaixo, amarrado por dois cabos de aço e puxado por dois
tratores. A cruz de ferro, que permanecera inclinada muitos dias, veio abaixo
com o frontão. Uma perfeita lição de barbárie, dada de graça a uma população
de 15 mil almas"
Altivo Câmara, do Instituto Histórico e Geográfico de São
João del-Rei, descrevendo a demolição da igreja
Objeto de fé orna boate na França
O possível retorno da portada da Igreja do Senhor de Bom Jesus
do Matozinhos a São João del-Rei reacende as esperanças de encontrar uma outra
portada de pedra-sabão ainda mais suntuosa: a que pertencia à antiga Matriz
Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga, que ficava em Piranga, na Zona da
Mata. A portada principal de madeira, marcos e moldura foram vendidos, em
1966, durante a demolição da igreja para construção de outra matriz.
Acredita-se que o templo, erguido por bandeirantes em 1694, foi a primeira
paróquia de Minas Gerais.
O Ministério Público foi informado que a fachada da antiga matriz teria sido
levada para o exterior e atualmente estaria sendo usada para decorar uma casa
noturna na França. Pedidos de colaboração foram feitos à Interpol, mas os
policiais da corporação internacional informaram não ser possível localizar a
peça com os dados repassados pelos promotores e pediram mais informações. Há
poucos registros fotográficos da matriz e não se sabe a dimensão exata da
portada, porque a planta do imóvel desapareceu na época da demolição.
Promotoria de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico
de Minas Gerais/Divulgação
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Segundo o MP, fachada da antiga matriz está na Europa |
No início do ano, Belo Horizonte devolveu a Capela de Santana,
construída em 1712, à histórica Mariana, na Região Central de Minas. A igreja
havia sido desmontada e reerguida, na década de 1970, na sede da empresa
Mendes Júnior, no Bairro Estoril, Região Oeste de BH. Por lá ficou até 1999,
quando a empresa fechou e doou as peças para a Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), onde permaneceram guardadas, até o início do ano. Em reunião na
sede da Procuradoria-Geral de Justiça, na capital, a Prefeitura de Mariana
assumiu o compromisso de reconstruir o templo católico no seu local de origem,
o Bairro Gogô, a quatro quilômetros do Centro.
As peças ocupavam aproximadamente 200 metros de um galpão do câmpus da
universidade na Pampulha, em BH, e haviam passado por um processo de
descupinização. Os moradores de Gogô ainda lamentavam a perda do patrimônio e
continuavam celebrando, a cada 24 de julho, a festa de Santana, sobre os
alicerces de pedra que restaram. Uma comissão lutou por uma década pela
reintegração da capela. Para o novo altar, foi levada uma réplica da imagem da
padroeira; por questões de segurança, a original continuou no Museu
Arquidiocesano de Arte Sacra.