Barroco mineiro adorna luxo
paulista (Jornal Estado de Minas - 24/09/2008)
Fazenda de Campinas ornada por portal em pedra-sabão
originário de templo histórico em São João del-Rei, que o MP tenta reaver,
abriga também outras peças de valor histórico
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O pórtico arrancado da Igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, de São
João del-Rei, enfeita o acesso à pequena capela localizada em luxuosa
fazenda da família de banqueiro paulista
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Campinas (SP) – “Colocamos uma madeira de
cada lado e fizemos uma tala bem mais alta que eu, aquela do tipo de levantar
motor de carro, de corrente. Usamos ela para colocar a portada no lugarzinho.
Montamos primeiro as laterais, nas medidas certinhas. A parte de cima,
colocamos na tala, ficou direitinho. Do jeito que você está vendo.” É com
riqueza de detalhes que o caseiro Joaquim Ferreira, de 60 anos, se lembra do
dia em que um caminhão parou na entrada da Fazenda São Martinho da Esperança,
em Campinas (SP), e descarregou um portal entalhado em pedra-sabão, com ordens
para que fosse montado em frente à pequena capela ao lado da sede da fazenda
do seu patrão, o advogado e banqueiro Mário Pimenta Camargo, falecido em 1996.
O que o funcionário desconhece é que a peça é uma parte do patrimônio
histórico arrancado de Minas Gerais, em um processo que começou com a
derrubada criminosa da Igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, de São João
del-Rei, na Região Central do estado, em 1970. E a peça entalhada em pedra,
alvo de ação do Ministério Público mineiro, que reivindica sua devolução, está
longe de ser a única antigüidade transplantada para a luxuosa propriedade do
interior paulista.
Mineiro de Lavras, na Região Central, o caseiro Joaquim não sabia que a peça
do século 18 pertencia a um templo de uma cidade da mesma região. Mas
desconfiava que a origem tinha algo a ver com sua terra. Ele a montou
praticamente sozinho. O Estado de Minas esteve ontem na luxuosa fazenda que
ainda abriga a peça vendida ao banqueiro paulista pelo padre Jacinto Lovato há
mais de 30 anos, com a demolição da igreja original, de 200 anos, e a
liquidação de suas peças para a construção de novo templo. Como noticiou o EM
na segunda-feira, a Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e
Turístico pediu na Justiça a reintegração do portal à cidade de origem e
conseguiu proibir sua retirada da fazenda até o fim do processo. Se os donos
venderem a peça antes do julgamento, estão sujeitos a multa de R$ 100 mil.
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Na fazenda, há outras antigüidades, como sino do século 19 e pia
batismal.
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Embora cheio de teias de aranha, com resquícios de uma caixa de
marimbondo na porção esquerda e uma lasca quebrada na porção direita, o portal
de aproximadamente seis metros de altura por três de largura está em bom
estado. Tudo indica que não se trata da única relíquia histórica nos redutos
de São Martinho da Boa Esperança. Um sino de ferro fundido do século 19,
instalado em uma torre, enfeita o jardim a poucos metros da sede da fazenda.
“Esse sino veio de Salvador, da Bahia, um pouco depois da portada”, contou o
caseiro Joaquim Ferreira. Na peça, é possível ler a inscrição “Nosso Senhor do
Bonfim – José Pereira Barboza – 1892”. Técnicos da Promotoria Estadual de
Defesa do Patrimônio Cultural de Minas explicam que o primeiro nome gravado
pode ser uma referência ao nome da peça ou da igreja de origem. O segundo nome
seria do doador da peça e o número ao lado, a data de produção.
COLEÇÃO Joaquim Ferreira desconversa quando é perguntado
sobre mais relíquias sacras na propriedade. “Ainda tem alguma coisa aí, mas eu
não sei muito bem não”, diz, encerrando o assunto. A entrada da capela atrás
da portada é enfeitada com duas imagens ocas, de madeira, de São Francisco de
Assis e São José. No interior do templo, há antiguidades como uma pia batismal
de pedra, um confessionário de madeira e um oratório com pinturas internas,
localizado sobre o altar. Um dos maiores colecionadores de relíquias e obras
de arte do país, Mário Pimenta Camargo ficou conhecido por causa do seu acervo
de quase 4 mil itens, entre móveis, prataria, porcelana e livros. Quando
comprou a fazenda, em 1972, a reconstruiu com os cuidados de quem estava
disposto a transformar o lugar não apenas em refúgio para sua família, mas em
abrigo para parte de sua coleção.
Em um salão à direita da sede, segundo funcionários da fazenda, estão
guardados dezenas de instrumentos e antigüidades de cassinos, da época em que
a prática de jogo era liberada no Brasil. A lateral da sede é rodeada por
estátuas gregas. Apaixonado pela fazenda, o banqueiro recebia autoridades
nacionais e internacionais na estância. Entre os episódios inesquecíveis estão
a visita da ex-primeira-ministra inglesa Margareth Thatcher, que mobilizou
dezenas de seguranças e autoridades na primeira metade da década de 1980. De
acordo com os funcionários, o ex-presidente Fernando Collor de Melo já esteve
lá, assim como Luiz Inácio Lula da Silva. Mário Pimenta morreu de infarto em
1996, aos 67 anos, depois de passar mal na fazenda.
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Imagens sacras e oratório, parte da coleção, compõem o altar da igrejinha |
O imóvel e os outros bens da família são administrados por seus
filhos. Muito bem cuidados, os campos à beira da Rodovia Anhangüera, entre
Campinas e São Paulo, abrigam cabeças de gado, em vez das plantações de café
do passado. O EM entrou em contato com Maria Beatriz Pimenta Camargo, filha de
Mario Pimenta, por telefone. Perguntada sobre a portada de pedra-sabão, ela
disse acreditar que a peça fosse de concreto. Informou que já estava na
propriedade quando seu pai a comprou, “há mais de 40 anos”, o que contradiz as
informações do caseiro. Outra filha, Maria Isabel, foi contactada também pelo
telefone e disse desconhecer a ação do Ministério Público, por isso não a
comentou. Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a ação civil pública
está em fase de cumprimento de carta precatória em São Paulo.
Preservação só no papel
Igreja cujo pórtico foi vendido a banqueiro e que hoje é
objeto de ação do MP era tombada pelo Iphan. Mesmo assim, foi demolida e teve
seu acervo liquidado a preços de ocasião
Jackson Romanelli/EM/D.A Press
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Fazenda São Martinho da Esperança, em Campinas (SP), também teria sido o
destino de pia batismal |
Campinas (SP) – O papel do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no processo de demolição da
Igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, de São João del-Rei – da qual foi
retirado portal em pedra-sabão que hoje adorna uma fazenda no interior de São
Paulo, alvo de ação do Ministério Público mineiro –, ainda é um mistério para
quem estudou o episódio. Em 1938, o conjunto arquitetônico e urbanístico da
cidade histórica foi tombado pelo órgão. A igreja do Bairro Matozinhos estava
entre as protegidas contra “destruição, demolição ou mutilação”, de acordo com
o Decreto-Lei 25/37. No entanto, apesar do tombamento expresso do bem, em 1970
ele foi colocado abaixo, com a anuência do padre da cidade e do bispo.
Entre os documentos referentes à demolição da igreja, há uma carta do então
dirigente do Iphan, Afonso Arinos de Melo Franco, dizendo não haver, no
templo, qualquer elemento de cunho artístico que interessasse à preservação.
“A decisão foi muito contraditória. Por causa do tempo, é difícil apurar o que
de fato aconteceu”, disse ontem o promotor e curador do Patrimônio Cultural de
São João del-Rei, Antônio Pedro da Silva Melo, um dos autores da ação civil
pública que pede na Justiça a reintegração da portada à cidade de origem. “O
que podemos fazer são conjecturas. Pode-se atribuir isso à desorganização e
problemas de comunicação da época. Talvez Arinos não se desse conta do que
estava acontecendo”, disse o promotor, evitando polêmica.
Silva Melo acredita ser difícil recuperar outros bens que foram levados da
Igreja de Bom Jesus do Matozinhos. “Mesmo que boa parte dos itens tenha sido
vendida licitamente, é difícil rastreá-los por que não houve preocupação, na
época, em registrar de alguma forma as transações”, afirmou. Durante as
investigações sobre a destinação do portal entalhado em pedra-sabão que ficava
na fachada do templo, fontes do Ministério Público informaram que o mesmo
comprador do portal também teria levado a pia batismal da igreja. Há uma peça
do tipo na capela da Fazenda São Martinho da Esperança, em Campinas (SP), mas
não é possível dizer se pertencia ao templo de São João del-Rei.
ANIVERSÁRIO A demolição ocorreu na mesma data em que eram
comemorados os 200 anos de construção do templo, erguido em 1770. A capela
recepcionava romeiros e moradores, principalmente durante as festas do
Espírito Santo, mas ficou marcada pela passagem das tropas dos voluntários da
pátria, quando seguiam para a Guerra do Paraguai, na segunda metade do século
19. Por isso, o general Dióscoro Gonçalves do Vale chegou a fazer à Igreja um
apelo para que o tempo não fosse ao chão. Foi em vão. O maior tesouro da
igreja – a portada principal – foi vendida a Mário Pimenta Camargo por 5 mil
cruzeiros, valor equivalente, hoje, a cerca de R$ 4,3 mil.
O Ministério Público localizou a portada graças a uma revista de decoração,
que exibiu reportagem sobre as riquezas da fazenda paulista, localizada a 13
quilômetros do Centro de Campinas. O imóvel também já serviu de cenário a um
ensaio sensual para uma revista masculina e quase foi locação de uma
telenovela, de acordo com os funcionários. Segundo eles, os donos da fazenda
freqüentam o lugar apenas nos fins de semana e chegam até lá de helicóptero.
Quem cuida do acervo de arte e antigüidades deixado por Mário Pimenta Camargo
é a viuva Beatriz Pimenta Camargo, que não retornou os pedidos de entrevista
feitos pelo Estado de Minas.